
do fundo do ventre à ponta da língua
Costurar fendas de outros tempos
quando nascer (ou morrer) não é uma escolha
Falo por um fio
Por uma Mínima Costura que nos Civilize
(...) A palavra mínimo insistiu em mim ao final da Jornada. Associo ela ao trabalho de duas artistas brasileiras: Néle Azevedo e Laura Freitas.
(...) Aproveito para falar de um trabalho da artista Laura Freitas chamado Quando recolhi os cacos espalhados pelo chão, que esteve em exposição no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (RJ). Laura recolhe cacos de vidros e porcelanas e os costura com um fio de tricô na tentativa de reuni-los, em vão. Ao costurar ela pode também se cortar. Então o faz com muita delicadeza e cuidado. O formato e o tamanho dos cacos dão a direção da costura ao ponto de criar um manto pesado e espesso. As qualidades do material levam a artista a tecer no chão e acolher, com linha e agulha, cada caco em seu colo.
A ação da arte proposta por Laura elucida algo que a psicanálise nos transmite: a vida como esse esforço, essa tentativa vã de reunir os cacos a partir das narrativas que nos constituem. Na impossibilidade de uni-los, podemos abrir espaço para novas formas de compor os cacos com a sustentação de costuras por um fio. Este fio do qual nos constituímos e vamos compondo é a palavra. É a partir dela e com ela que fazemos costuras mínimas que nos amarram com a vida. Esses tempos pandêmicos tem revelado esse tom do “por um fio” do qual somos feitos. São muitos os cacos durante esta pandemia. Alguns começamos a recolher; outros não avistamos que estão lá, outros ainda quiçá iremos ver. Saberemos somente a posteriori, como Freud nos lembra.
Por hora, concluo dizendo que esta escrita foi uma possibilidade de recolher alguns cacos que tem ficado pelo chão. Essa mínima costura a mais fez diferença.
Trecho do texto de Ariádini de Andrade para o site Psicanalistas pela democracia - psicanalisedemocracia.com.br
março, 2021
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Quando recolhi os cacos espalhados pelo chão
Laura Freitas transita entre a ação e a construção de objetos, dialogando com o crochê, o desenho, a performance, a escultura. Seus assuntos orbitam pelos lugares do feminino, da sexualidade e do espaço íntimo. Há o fálico e o fecundo quando o ovo, por exemplo, aparece recorrentemente em objetos e instalações ou, ainda, quando a gema se torna matéria – através do visgo, do peso, da cor – para desenhos ou vídeos.
Além de um vocabulário da gestação que se estende da natureza à maternidade, Laura Freitas se debruça sobre as feridas, as cicatrizes, os traumas. Não somente as da pele, mas também dos outros corpos que nos habitam, como os cacos de louça do ambiente doméstico que Laura une com fios de linha num impulso de cura ou de retorno a alguma origem – ainda que incerta, mesmo que impossível. Em Quando recolhi os cacos espalhados pelo chão, ação iniciada em 2018 que se estende infinitamente no tempo-espaço, o gesto de costurar cacos se transforma numa espécie de rito de espera que inevitavelmente nos lembra o eterno tecer de Penélope enquanto aguardava seu querido Ulisses retornar da guerra de Tróia.
Além de um vocabulário da gestação que se estende da natureza à maternidade, Laura Freitas se debruça sobre as feridas, as cicatrizes, os traumas. Não somente as da pele, mas também dos outros corpos que nos habitam, como os cacos de louça do ambiente doméstico que Laura une com fios de linha num impulso de cura ou de retorno a alguma origem – ainda que incerta, mesmo que impossível. Em Quando recolhi os cacos espalhados pelo chão, ação iniciada em 2018 que se estende infinitamente no tempo-espaço, o gesto de costurar cacos se transforma numa espécie de rito de espera que inevitavelmente nos lembra o eterno tecer de Penélope enquanto aguardava seu querido Ulisses retornar da guerra de Tróia.
Texto escrito por Ana Miguel, Brígida Baltar e Clarissa Diniz
Catálogo da exposição coletiva "Ainda fazemos as coisas em grupo" , realizada no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, dezembro de 2019.
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FALO POR UM FIO
Com exceção das luzes que emanam de duas grandes projeções nas paredes, a sala é praticamente toda escura. Ou pelo menos é assim que a percebo. A sensação é de tranquilidade. As projeções dão movimento constante ao espaço e captam de imediato meu olhar. Mas é no arranjo esparramado no chão que ele se detém e o impulso de me abaixar para examiná-lo de perto é incontrolável.
Ali, tão frágeis e delicados, repousam centenas de pequenos objetos feitos de crochê e cascas de ovos. Sua forma inconfundível é enunciada pelo título da exposição. De pé, inclinados, deitados, envergados, rígidos ou moles, cada falo parece ter encontrado sua posição mais confortável naquela pequena floresta, onde parecem desfrutar do calor da fraca iluminação. Do rés-do-chão, alguns me fitam diretamente, outros sequer dão-se conta da minha presença. Tão frágeis eles são. Tão vulneráveis em sua materialidade e disposição naquele espaço. Mais uma vez, é o título da exposição que me informa: eles estão por um fio. Por um fio de serem esmagados pelos meus pés. Por um fio de serem adorados por mim. Por um fio a ser puxado...
A paleta terrosa do material lembra as cores da pele humana, mas, se diferenciam-se pelos tons, não o fazem pelo tamanho. Não há maiores nem menores. Há apenas o necessário para que a casca de um único ovo complete delicadamente cada estrutura tecida, ao mesmo tempo em que é envolvida e aconchegada por ela. Também aí, todos estão por um fio, protegidos por ele.
Lembro de cidades na Grécia antiga, de ruas adornadas com falos gigantes que se impunham perante os habitantes como símbolos de vida e fertilidade. Aqui, os falos de ovos de Laura Freitas também pulsam vitalidade, mesmo que esvaziados de seu conteúdo orgânico, mas têm tamanho compatível com os de falos humanos. São, assim, falos possíveis. Já não querem se impor, mas deixam-se formar por muitas mãos femininas, que os tecem delicada e dedicadamente. Por horas a fio.
Aline Rena
Rio de Janeiro, 2019
1 A exposição “falo por um FIO”, com curadoria de Fernanda Pequeno, foi apresentada na Galeria Candido Portinari, na UERJ, do dia 5 de julho ao
dia 22 de agosto de, 2019.